Ivson Wanderley Pessoa, o Ivinho, não é fácil, tampouco é difícil. Tem o coração aberto, você percebe o carinho e o respeito que sente por quem lhe oferece atenção e reconhecimento. É só falar de igual pra igual. Caminhamos pelo Campus da UFPE, sentamos à beira do lago. Os estudantes que passam pela calçada provavelmente não imaginam que esse cara aí de cabelos compridos, emaranhados e claros, bermudas e Havaianas, é aquele músico brasileiro que tocou pela primeira vez no Festival Internacional de Jazz de Montreux, em Julho de 1978. Mas alguns o conhecem, ele ressalta: “aqui na universidade tem até tese de mestrado sobre mim... já pensou?”. E já foi logo me avisando: "eu estou aqui quietinho no meu canto. Se houver confusão, quem faz a confusão é quem chega, não eu."
Com Marco Polo, Paulo Rafael, Almir de Oliveira, Israel Semente e Agrício Noya, fez parte do grupo Ave Sangria no início dos anos 70, mítica banda da contracultura e da irreverência que contestava o poder político e a moral daqueles anos, com uma estética artística bem à frente de seu tempo.
Ivinho e seu virtuosismo musical faz parte de história da musica pernambucana e brasileira. Esquecido e um pouco fora de cena -mas nem tanto-, sabe bem que é taxado de louco, mas todo mundo reconhece o grande músico que ele é e o que representa. De uma inteligência e velocidade de raciocínio surpreendentes, ele sempre tem coisas pra contar. Tanto, que fala sem parar do que quer, de quem quer e como quer, se atropela a ele mesmo e abre assuntos e parênteses que nem sempre são fechados, como quem deixa todas as portas abertas para algo de bom desse mundo entrar, o mesmo mundo do qual ele vive se protegendo e que, ao mesmo tempo, fecha as portas para ele.O voo da Sangria
Como surgiu o Ave Sangria? Almir disse uma vez que foi ele que começou a banda e que ninguém -nem mesmo os da banda- reconhecem isso...
- O Almir falou isso? Veja bem, ele e o irmão dele eram integrantes de um grupo chamado Os Astecas. E eu já era integrante do grupo Os Selvagens. Então Almir foi chamado para ser o cantor dos Selvagens. Ele cantava músicas do Rolling, de Caetano... e cantava as musiquinhas dele e algumas parcerias com Marco Polo. Depois o Marco Pólo se integrou nas gafieiras aí... e aí formou-se o grupo, um grupo de baile, o Tamarineira Village, que depois virou Ave Sangria. Éramos os caras da vila dos Comerciários. Realmente eu já era integrante do Ave Sangria, junto a Marco Pólo, Agricinho, Rafles, porque eram todos da mesma vila... e o Almir também era, é claro.
Então ninguém em particular “criou” a banda?
- Eu ajudei a criar o grupo. Pode ser até que tenha sido mal criado, mas dizer que eu criei, que é minha... Ninguém cria um grupo, Ninguém é um criador. Quem cria é o todo poderoso deus. Você cria umas canções... pode criar seus filhos, mas não cria um grupo. E eu me apoderar disso de criar um grupo é a mesma coisa que Paulo Rafael dizer que a abertura do show Perfumes e Baratchos é dele e não é. Ele confirma nas entrevistas que é dele e não é. É minha e de Zé da Flauta! Eu criei a frase, passei para o Zé, pasei isso na flauta mesmo. Vale a pena corrigir o erro, colocar todos os pontos nos is. Algum dia vão ter que dizer como é que é... pelo menos entre nós, que pegamos num instrumento chamado violão, teclado, guitarra, percussão... que temos um emprego como qualquer um pra não morrer de fome, seja poeta ou músico. Se bem que você é um bom músico mas ganha dinheiro como engenheiro.
O Ave Sangria era chamado de "os Rolling Stones do Nordeste". Era mais por causa do som ou da atitude?
- É porque não éramos uma banda estruturada como os Beatles, éramos uma banda escrachada, revolucionária... uma banda de meninos suburbanos, ligados a drogas,ao rock´n roll, etc e tal. Alienados tentando sobreviver numa época em que se falava em música americana, movimentos culturais artísticos brasileiros, regionais, locais, etc e tal. Mas se for pra comparar com a banda do escrache, prostituição e sacanagem dos Rolling Stones, então posso colocar o Ave Sangria na balança, que se der 100% dos Rolling Stones, do Ave Sangria dá pelo menos 90! (risos). Mas na adolescência queríamos ser conhecidos como Mick Jaegger, Keith Richards... e tantos outros que, como nós, eram perversos e peraltas... e tu vê agora, né? Estão ficando todos velhos, e continuam aí, esses coroas todinhos. Mas já foram meninos também, suburbanos...
Com quem foi melhor trabalhar? com Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, Alceu Valença ou Ave Sangria?
- Individualmente valeu com todos. Todo o tempo que eu fiquei com todos eles, entre as quatro paredes de um ensaio, de um estúdio, encarando o Zé Ramalho na Paraíba... encarando o Alceu em Ipanema... e de repente descíamos para almoçar e aparecia Geraldinho e era aquela coisa toda de pegar o violão e cantar, né? E tomar uma Serra Grande, que é uma cachaça regional de Pernambuco e aquela coisa toda: sarapatel, mão de vaca e sururu e bla bla bla e bla bla bla... e literatura! Mas comigo foi sempre assim: entre as quatro paredes: eu e quem é você? Na faço questão de preferir um... se foi com Alceu foi também com Ednardo, com Xangai, com o Zé, então foi bom também com o morador do prédio onde eu morava só, e eu ficava esperando a minha mulher chegar... e ficava no térreo esperando e esperando... até que chegava uma hora que esperava não sabia mais nem o quê! Mas o Vital Farias sempre foi um. Sempre foi não, ele é! Na porta, na sala... e agora no celular também (risos).
Afinal, a censura ao "Seu Valdir" -o samba-choro onde Marco Polo canta em primeira pessoa para outro homem-, (regravada por Ney Matogrosso anos depois), foi por causa do colunista João Alberto ter falado na televisão que a música era um atentado aos bons costumes?
- João Alberto apenas perguntou por mim. E aí disseram: ele desapareceu ou já morreu! (risos). Ele fez uma crítica, sim. Porque Seu Valdir era uma música andrógina, feita para intérpretes homosexuais, e Marco Polo não é. Pelo menos a mim nunca deu uma cantada (risos). Mas eu prefiro Ney Matogrosso interpretando Seu Valdir, ou Cauby Peixoto...
O Cauby Peixoto gravou essa música?
Não, não gravou, mas se deixar com ele, ou com o Cássio Sette ou com o Gê Domingues dava mais certinho, porque rebolam, você morre de rir... porque homosexual tem que transmitir alegria, e quanto mais rebolar mais é motivo de risada. E Ney, todo assumido, com aquela fantasia extravagante e aquele corpo esbelto, magro e cabeludo, deu certinho para cantar Seu Valdir, que sentava no colo e pegava na barba dos coroas e deixava os coroas doidões... sabe como é, né? Ney fazia aquela bagunça nos coroas. Mas Marco Polo cantando Seu Valdir... é como cantar isso com chapéu e sandálias de couro, entendeu?
Você não respondeu totalmente a minha pergunta, mas tudo bem.
- Deixa pra lá (risos).
Seu Valdir existiu mesmo?
- Tinha uma história que ele era um português dono de uma mercearia, e ele se apaixonou por uma negra. Mas essas são historinhas que Marco Polo conta... de uma cigana na estrada que leu a mão dele e assim surgiu o nome de Ave Sangria, por exemplo. Só ele sabe explicar até hoje por quê. É o dono da mercearia e essa cigana na estrada... Estão na internet essas histórias.
Seu Valdir foi uma música que Marco fez para Marília Pêra cantar em uma peça?
- Ele conhecia Marília Pêra. Ele já era um jornalista conhecido no Rio e ele chegou a dar músicas para Zezé Motta, provavelmente para Marília Pêra também, mas não sei se essa aí caiu na boca da Marília, não sei dizer. Mas pra Ney, eu levei realmente... ele estava na cama, o quarto estava cheio de veados. Eu me sentei numa cadeira e cantei Seu Valdir pra ele e ele gostou e gravou.
Naquela época, tinham a obrigação de tocar para a Polícia Federal antes do show, para passar pelo crivo da censura?
Tinha sim. Tinha que mostrar a letra, carimbar as faixas e os cartazes autorizando o espetáculo. E sempre tinha “eles” na primeira fila, para ver se acontecia algo “revolucionário”. Tipo assim... fazer uma “matança”, um absurdo desses de pegar uma galinha, botar no palco, torar o pescoço dela e ver o sangue rolar pra todo lado ou mostrar a bunda pra platéia... ou acender um cigarro de rolo para as pessoas crerem que estava com um baseado na mão. Quero dizer, são atos revolucionários e você era chamado pra responder a respeito de tudo aquilo que você estivesse fazendo no palco, independente do que você estava fazendo bem.
O Ave Sangria ainda participou da gravação da música "Vou Danado Pra Catende" e de alguns dos primeiros discos de Alceu. Me lembro anos atrás, Israel falava com muita mágoa de Alceu, como se ele tivesse usado vocês e depois descartado. O quê aconteceu mesmo com ele?
- Não está mais Israel para falar de Alceu, né? Quando Alceu chamou os músicos para gravar não era pra ser só um guitarrista, ou só um baterista pra assumir essa função, seriam vários músicos tocando em torno de um nome nacional, e o Israel seria o nome do interior, o cara que estava batalhando por aqui. Era uma satisfação trabalhar com Alceu, ser chamado por Alceu, mas jamais diria “Ô Alceu, eu vou trabalhar de graça pra você”. Ninguém ia fazer isso. Era só encarar um homem cabeludo que tinha barba e agora não tem mais e que ficava falando pra você e você só ficava ouvindo ele falar. Acho que é isso que chateou Israel. Mas deixa te contar umas coisas absurdas: o que é absurdo me deixa triste e o que é engraçado me faz sorrir. A tragédia é horrível e a beleza é uma coisa boa. Como esses jardins aqui do Campus, essas árvores... e a beleza que há nas meninas. Depois dos 18 tá tudo valendo, viu? É tudo uma questão de ser ou não ser (risos).
Você participou de Paêbirú, disco cult de Lula Côrtes e Zé Ramalho, quê lembranças tem desse disco?
- Ahhhh, eu estava em casa e aí me chama Zé: “Oi, pega a tua guitarra, vamos lá pra Rosemblit (estúdio de gravação do Recife da década de 70), estou fazendo um com Lula”, me disse. Me botaram num carro enorme, me levaram pro estúdio e fizemos algo grande aí, tem uma coisa grande documentada aí.... e as histórias de esse disco se espalharam por aí, entraram na internet e piratearam, etc e tal.
A sonoridade do Nordeste fusionada ao som que chegava da Inglaterra e dos Estados Unidos, deveria ser atribuída aos tropicalistas, a Alceu e, por quê não, a Ave Sangria, ou um pouco a cada um?
- O Ave Sangria já tinha Pernambuco nas origens, né? Na Bahia seria o movimento tropicalista... e a fusão foi surgindo naturalmente enquanto chegava esse material estrangeiro, Rolling, Beatles. Já ouvíamos a música dos anos 50, que os pais e os avós já ouviam, e já sabíamos das letras, das tendências... aí quando partiu para protestos e outras coisinhas mais, ficou daquela maneira... você como nordestino, querer fazer uma coisa no nível da música estrangeira, só que com a viola, a sanfona, a zambumba, o atabaque, sei lá... Houve assim a junção da eletrônica com a acústica daqui. E acho que já havia essa mistura quando se começou a resgatar o baião... se você tocar Ob-la-di-ob-la-da dos Beatles é o mesmo ritmo de um baiãozinho que é donc-ti-qui-tim din-din-dom din-din-dom ti-qui-tim... quer dizer: é mais uma questão de instrumentos, só que um faz com a sanfona e o cara faz com um baixo elétrico.
O Ave Sangria gravou um clipe com a música “Geórgia a Carniceira” para o Fantástico, da Globo, que nunca foi ao ar. Permanece até hoje nos arquivos da emissora. Nunca houve uma tentativa de recuperar aquilo?
- Eles arquivaram e ficou nas mãos deles. Nunca tentamos recuperá-lo. O que é deles é deles.
- Era num boliche. Nós todos éramos os paus do boliche e Marco Polo era a bola (risos).
Como era isso?
- Era uma pista, e nós sentava-mos no centro... na posição de boliche (risos). Era um boliche em pé com a guitarra, outro com o contrabaixo e outro com a bateria e aí... Marco Polo jogava a bola.
- E ele derrubava todos?
- Derrubou muita gente! (risos). Na verdade, esse clipe era para ser de Alceu Valença, mas nós fizemos uma defesa de que o Ave Sangria estava sendo usado por Alceu, mas aí eles falaram que queriam aproveitar que estávamos todos do Ave Sangria aí e quiseram fazer a filmagem com a gente... É porque Alceu não queria que aparecessem Marco Polo e Almir, porque era concorrência para colocar a boca e cantar. Então me queria botar dividido na viola, no baixo... mas, era na viola, na percussão, na segurança, na bilheteria? Era onde? De aqui a pouco não ia querer você só, ia querer Spok e sua orquestra em um só!
- Você está falando de Alceu?
- É claro, da “madre superiora” Alceu Paiva Valença... a madre superiora do convento. Quem chamava ele assim era o Zé Ramalho.
No mítico show “Perfumes e Baratchos”, no Teatro Santa Isabel, em 1974, Marco Pólo mandou que os portões fossem abertos ao público. Esse devia ter sido o ápice do grupo, porém foi o canto do cisne...
- Foi um show de platéia e palco, de energia bonita, jogada do palco para a platéia e da platéia pro palco. Houve grandes momentos de Israel, batendo tambor e cantando... bons momentos da banda toda. Uma versão de Geórgia com violão, que vai aumentando e fluindo... e achei legal ele mandar abrir as portas, porque ninguém tinha dinheiro pra entrar. Ficavam do lado de fora mesmo. Nem passagem pra voltar pro bairro deles tinham...
Você disse que a decoração do show (de Kátia Mesel) parecia “coisa de macumba”. Por quê? Tinha velas acessas no palco?
- Não, não. Achei legal! É porque Kátia realmente gostava desse negócio de Iemanjá, Xangô... e ela gostava de acender umas velas e achava bonito aquele cenário. Era sempre colorido, era um cenário muito louco... Lula (Cortes) fez um desenho de um boneco de quase 4 metros. Airto Moreira fez algo parecido quando se apresentou em Montreux, na Suíça, com a Flora Purin.
Na foto mais famosa do Ave Sangria, vocês aparecem junto a uma menina semi-nua deitada no meio. Quem era?
- Ahhh... aquela era uma amiga da gente, Lúcia.
Quem fez aquela foto?
- Foi num estúdio de Boa Viagem, da Kodak. Foi toda feita lá.
Uma vez te roubaram a Fender Stratocaster branca. Como e onde foi isso?
- Não roubaram não. Eu vendi. Troquei por outra que depois perdi num incêndio... e aí comecei a me internar e a procurar viver, né? Porque estava ficando sem poder viver numa cidade em que não tinha apoio de ninguém, nem de patrão nem de patroa. Tinha minha mãe mas quando minha mãe morreu, as coisas da mãe tem que ser divididas com os irmãos e esse rolo todo... deixa pra lá! Hoje a mim só interessa eu, um baixo e uma bateria... a função, a profissão, o instrumento. Pra quem vive de um salário do seguro social, com várias internações. Toda essa história repetida há 16 anos, desde que eu entrei no benefício do seguro social do governo federal. Senão a quantos palmos de terra abaixo do solo estaria agora? Quero dizer... do jeito que eu vivia que era menos um, agora sou mais um, olhando a todos de fora. Eu não quis me juntar a um monte de gente no cemitério. Já tem muita gente enterrada aí. Mas eu não morri não, e estou achando isso ótimo!
Vocês tinham consciência de que estavam fazendo uma nova música nordestina, de vanguarda, ou o som surgiu naturalmente?
- Marco surgiu com umas músicas dele. Ele só botava a voz e se acompanhava com o violão, então nós tínhamos a técnica, e aí começamos a trabalhar aquelas músicas com os melhores elementos da música pernambucana, nordestina, de onde nós éramos.
Gostou da versão que a banda Querosene Jacaré fez de “Geórgia a Carniceira”?
- Rock´n roll! Não gostei... não tem nenhuma novidade. Foi só aprender a letra e transformar aquilo num heavy metal, trash metal... alguma coisa de metal aí, com certa distorção. Eu não gosto de Sepultura, essas coisas. Mas foi bom terem gravado e foi bom para o rock´roll todo... e para Marco Polo, porque a música é dele! (risos). É uma música muito bonita, a letra... mas eu acho legal ela lentinha, essa coisa de ir fluindo, as entradas dos instrumentos, os climas da percussão... até se arredondar e aí sim, virar rock´n roll. Assim acho legal, mas “Roarhhhuáááámmm...” (imita som de guitarras distorcidas), assim feito cachorro raivoso não. Aí é agressão. Nada a ver com uma música que é... sussurrante.
E o livro “Do Frevo ao Manguebeat”, de José Teles, você leu? Conta toda a história... que é a tua própria história, não?
- Eu li. Dei aquela entrevista num bar. Eu na cerveja e o entrevistador no Teacher´s... Foi uma entrevista de um alcoólatra para outro alcoólatra! (risos). Imagina! Não, tudo bem, estou brincando... Ai tem uma série de verdades mas... apareceu aí que eu estava num prédio velho e que só descia para comer no self service. Não era bem assim. Mas foi legal, é um livro jornalístico, né? Escrito por um bom jornalista. Sentamos com o Zé Teles, tomamos umas... ele com seus Teacher´s e eu com a cervejinha e ele depois lançou o livro a 30 reais, eu acho. Mas poderia ter vendido a 1 milhão! Ele falou com as pessoas certas! E agora fizeram também um filme sobre Ave Sangria, fizeram uma pesquisa na Universidade Católica, entrevistaram cada um, me filmaram lá na praça Maciel Pinheiro, mas as perguntas sempre se repetem, né? Não assisti o filme ainda porque a imagem da minha televisão está com problemas... as cores não estão nítidas. Tem muito vermelho onde só seria rosa (risos). O rosa está muito vermelho! Está mais para quem está andando pela beira do mar, virando camarão... de bobeira, esperando na praia nem sei mais o quê.
O primeiro brasileiro a tocar em Montreux
Você foi o primeiro brasileiro a se apresentar ao vivo no Festival Internacional de Jazz de Montreux...
- (Interrompendo) Não teve o primeiro homem que foi à lua? Eu fui o primeiro que foi pra Montreux! (risos).
... Aquele foi um show de improvisação e virtuosismo, só com uma viola de 12 cordas que você chamava de “Furiola”...
- (Interrompe novamente) A Furiola. A fúria da viola! É quando o homem tá cheio de garra... e depois querem tira a garra dele com Gardenal e com Diepax... Não pode!
Tinhas alguma base preparada para aquele show ou tudo foi surgindo no palco?
- Aquilo foi fluindo, fluindo mesmo... o som a sua sina. Tinha que ter energia e coragem pra jogar tudo de uma vez, né? Aliás, em dois horários, ás 5 da tarde e às 9 da noite... então tomei umas doses de Teacher´s... só pra dar uma calibrada no pneu... nem abri a boca, que eu não sou de andar cantando, mas cheguei a solfejar, bem agudo, fininho que só! Dá pra ouvir no disco. Mas não dava pra abrir a boca. Foi fé em deus e pé na tábua... e tirar um som na viola. Aí mandei ver crescentes e decrescentes, escalas, climas... etc, etc... sai de um ouvido e entra no outro, ora parece com um maracatu e de repente vira rock´n roll. É uma salada musical. As minhas influências estão todas naquela viola, que vai das bachianas de Villa-Lobos ao frevo marcado no pé. Mas tudo certinho, notinha por notinha... senão eles não iriam lançar pro mundo, né?
Sei que nomeaste as músicas na hora da mixagem!
- Me mandaram a passagem e me disseram: venha aqui dizer como é o nome de cada uma! Aí peguei minha bolsa, uma roupinha e os documentos, fui lá e fui dizendo o nome das músicas... fui inventando na hora: “Frevo Único”, “Meditação”... sei lá, palavras, intitulações...
Na capa do disco dá pra notar o buraco que você fez na viola. O quê danado te fez a viola?
- Foi gravando “Anjo de Fogo” de Alceu. Foi uma discussão dentro do estúdio Som Livre, no Rio. Eu só gosto de levar as coisas pro estúdio depois que estão ensaiadas, pra não ficar discutindo com o cantor: “É assim. Não é assim... É como..?” Aí tinha uma frasezinha errada... (Ivinho declama rapidamente toda a letra de “Anjo de Fogo”) “Eu sou como o vento que varre a cidade/ Você me conhece e não pode me ver/Presente de grego, cavalo de Tróia/ Sou cobra jibóia, Saci Pererê/Um anjo de fogo endemoniado/Que vai ao cinema, comete pecado/Que bebe cerveja e cospe no chão/Um anjo caolho que olhou os dois lados/Dormiu no presente, sonhou no passado/Olhou pro futuro e me disse que não...” Quando ele disse que “não” não foi “não”... foi um nããããão mesmo! Com uma intensidade super alta, mudou a dinâmica da música (imita os sons da guitarra, da bateria, do baixo). Paulo Rafael não estava conseguindo fazer essa frase e eu com a viola estava conseguindo. Aí eu parei para apontar o erro e até hoje estão dizendo que quem estava errado era eu e não Paulo Rafael, mas como é que vou provar?
Aí você chutou a coitada da viola...
- Não... (pensa um pouco e ri) Foi, foi. É verdade. Aí então não quis falar mais nada... dei um chute na viola e fui me embora. Aí ele falou (imita a voz de Alceu) “Hei, você.. venha cá, você está aqui gravando...” (risos).
Que fim levou a "Furiola"? Você conserva ela ainda?
- No dia do aniversário de uma filha minha, em Boa Viagem, a minha mulher demorou muito a terminar não sei o quê do vestido dela e eu fui pro bar, depois fui pro salão de beleza onde estava ela, e eu me vi aí entre as mulheres... Voltei pra cama e pro bar e de novo pro salão de beleza... e o vestido ainda não ficava pronto, e ainda tínhamos que ir não sei pra onde, com a viola, com o vestido... e as mulheres lá: “oh, meus pés, minhas mãos, minhas unhas, meus cabelos e as minhas sobrancelhas...” e toda essa demora, demora... e eu com pressa. Aí eu disse: “Agora não tem mais aniversário. Não tem mais nada!” e estourei a viola no chão e fui me embora... quando voltei, olhei pra minha mulher e disse “me dê um beijo” e ela: “tá, se quiser que dê um beijo, eu dou um beijo.” (pensa) ...mas até a hora de cortar o bolo, que íamos cantar os parabéns para você... até hoje eu não quero saber mais daquele dia. Voltei pra mamãe e fiquei com ela mesmo. Não fiquei com elas... as mulheres no salão. E a viola não prestou mais pra nada.
Gilberto Gil se apresentou depois de você naquela edição de Montreux. Como foi tua relação com ele?
- Eu já conhecia Gil daqui de Pernambuco, e conhecia de quando morei no Rio também. Uma vez me deu uma carona da Barra até Copacabana... e me chamava de Ivson, não de Ivinho. Nos encontramos na entrevista coletiva lá na Suíça, onde tinha jornalistas do mundo inteiro e só se falava inglês, francês, alemão... e eu no português mesmo... a base de Teacher´s e Ballantines... (risos).
E o teu encontro com o guitarrista John MacLaughin?
- Esse eu encontrei numa boate, numa mostra de pratos... e tirei uma foto com ele, que depois saiu num livro de jazz: o “álbum do jazz da música universal” (risos). Não falei nada com ele, que eu não falo inglês. Foi só a foto, todos estavam bebendo... mas naquela noite eu ainda fui me embora com uma italiana! Botei ela no banco de trás e fomos pela estrada dando uma entrevista, e depois fomos comer uma macarronada! Claro... ela era italiana!
Outras viagens...
Me fala daquele projeto musical “Avisa a Georgia” (parceria com o tecladista, cantor e compositor Gilmar Serra).
- Gilmar era um professor de filosofia, que tocava todo errado. Aí eu comecei a corrigir seus erros, a ensinar a construir acordes e tal. Eu passei pra ele umas músicas pra ele tocar certo, com a ajuda da bateria e do baixo do teclado eletrônico, então ele colocou letra numas cinco músicas dessas. Aí tocamos juntos uma vez no Teatro do Parque e no Pátio de São Pedro.
Gilmar Serra escreveu: “Ivinho é louco, o grego mais louco, um absolutista musical esquizóide, autista e supra-paranormal, mas sua música é linda, mágica e delirante”.
- E ele escreveu isso? Não li não!
Leio pra Ivinho o poema “O grego mais louco”, soneto para Ivson Wanderley, de Gilmar Serra: “O grego mais louco/O trágico, o “ídico”, o pânico/Em pan-demônico/Em pandemônico /O grego mais bárbaro/Ícaro, Hércules, Leandro/O greco-pindorâmico/O grego pantomímico/O esquizofrênico/Dionisíaco/O cômico /O gênio bufo/Esférico/Titânico!)
- ihhhhh, o professor escreveu isso?
- Foi um projeto patrocinado por Cristina Lundgren. Chamou só bons músicos, o Meirelles, Fará, Feijão no baixo... Ela gostava muito da gente e dava sempre uma força. Era dinheiro, carro, avião... Ela sempre foi legal com a gente, mesmo que às vezes era autoritária... levava no grito... e muita gente levava no grito também com ela (risos). Mas eu não vejo necessidade de estar gritando, não é? Se mulher e homem vivem no grito num apartamento ou numa casa, só pode ser empregado, ou ele dela ou ela dele. Mas pra ser marido, já sabe, não? É “vamos sofrer juntos?”. Até ficar os dois juntos discutindo na justiça! (risos).
Nem venha com "quantas" porque comigo é nenhuma mesmo!
- É ótimo! Só que o que fez isso aí ser ótimo foi a favela, a divulgação das favelas e as alfaias, em cima do Rap, do break e outras coisas derivadas da música americana... mas também do maracatu. Mas o que era o maracatu? só bater tambor. Aí chegou uma poesia forte, uma literatura forte falando do mangue... “lama eu, lama tu...” (cantarolando).Toda uma situação local, da nossa ilha de maruims (risos), saindo da pobreza. Eu gosto, mas no num volume alto! Aqueles tambores são muito altos! Bum Pat Bum Bum (imita o som)... é uma soadeira da mulesta! É uma música pra grandes públicos, pra rua... não é música pra teatro. Imagina essa bagunça toda dentro de um Santa Isabel! E o álcool e as outras coisas... que fazem com que perturbem cada vez mais a cabeça do cidadão! Hoje não tem mais um blues... não tem mais um baião arrojado... só tem bagunça e soada e letras fortes, né? Mas há letras boas, letras boas.
Que escuta Ivinho hoje?
- Eu gosto de tudo o que escutei da década de 60, 70... até que partimos pra discoteca nos 80. Aí eu disse: “não, não dá pra mim”. Ainda gostava dos Bees Gees, por causa dos vocais... mas atualmente não escuto ninguém. Eu escuto se um amigo meu grava um disco, aí me chama pra ouvir, então eu ouço. Não me interessa ouvir mais... já ouvi até o que estou fazendo hoje e não me interessa ouvir mais! Não me interessa ouvir mais Ave Sangria nem Zeppelin nem Hendrix... Eu já ouvi tanta coisa, meu irmão!
Você participou da coletânea A Turma Do Beco Do Barato (Projeto Antologia 70, de 2004), revisitando antigas canções de Lula Côrtes, Lailson -o cartunista- e do próprio Ave Sangria. O quê significou pra você aquele projeto? Te deixou feliz?
- Foi bom, foi um projeto de Humberto Felipe, que ainda se atreveu a colocar a voz em cima da de Marco Polo (risos)... e aí eu acompanhei ele, ensinei bases... Me pagaram como guitarrista e como violeiro, pela Lei de Incentivo à Cultura. Mas aí ele ficou com a viola, uma viola boa, coreana... uma Tigger, eu acho.. que era parte do custo do projeto, e eu pensei que fosse pra mim... mas tudo bem. Mas fiquei feliz sim, porque a partir daí começaram a ter respeito, a me dar valor... e depois também teve a entrevista com Zé Teles. Houve todo aquele apoio, a aprovação da Lei de Incentivo... e teve Felipe, que botou a boca no microfone para tudo isso. Ele foi muito legal comigo, mais que um amigo, foi um irmão... e meu patrão! (risos). Valeu porque Humberto e esse projeto me ajudaram e me fizeram evoluir, no sentido de me ver novamente na guitarra, na música, no meio... resistindo a tudo, mas sabendo que se eu não tenho o governo federal para me facilitar todo o aparato de remédios, terapia ocupacional, que leva a música para os pacientes... de cantar o que sai da cabeça pela boca... eu não teria o meu corpo inteiro e vivo, sabendo quem é quem na porta, no celular ou no centro da cidade.
Essa turma do Beco, já tentou te ajudar nos momentos mais difíceis que passaste? Você se encontra com eles?
- Não, não. Eles ficaram nos bares. Ele falam demais, eles bebem demais. Quando eu me internei por causa do alcoolismo, foi porque não aguentava mais quem estava arremessando copos nos subúrbios, no tiragostos e nas cachaças. Isso um dia tudo bem, mas no segundo dia e no resto do mês eles continuam fazendo isso... amanhecem totalmente trêmulos e voltam pro ponto de partida que é a barraca, porque para parar de tremer tem que beber de novo. Não tem necessidade de isso... tem que decidir, tomar Diasepan, tem que se tratar, tem que deixar de se juntar com quem não presta e fica fazendo essa mesma coisa todo dia, que é botar essa porcaria na boca. Mas também não tem necessidade de ficar na base do sonífero, da lerdeza também não... quero dizer que tem que haver hora para tudo. Se tem ensaio, vai pro ensaio. Se tem espetáculo... veja o que lhe vai fazer bem... uma comidinha salgada, uma cervejinha gelada e pronto! Faça o show! Mas não vá tomar aquilo que te dá sonolência! E se depois está com insônia, então sim, bota dez miligramas na boca e vai dormir! E veja se valeu o dia de ontem. Veja se valeu ensaiar vários dias para fazer aquela coisa daquele jeito naquele dia.
- E desse pessoal novo, alguém te chama para participar de shows ou discos?
- Chamam. Pedem pra levar a guitarra ou o violão pra ensaiar algo com eles. Por exemplo, o Hélder, do Expresso Bacurau me chamou (Hélder estava presente na entrevista). Ivano me chamou pra tocar uma música com ele uma vez, mas não toquei... Eu disse pra ele: “não adianta você ficar aí no alcoolismo, na base da Beer, meio grogue, que comigo é assim: nem venha com tantas porque comigo é nenhuma mesmo!” (risos).
Quem te influenciou mais na guitarra?
- Jimi Hendrix, Jimmy Page, George Benson, George Harrison, que criaram um estilo próprio. Tem os Jeff Becks, os Van Halens... assim como tem guitarristas aqui também: o Robertinho, Paulo Rafael, tem Ivinho (risos) e uma série de grandes músicos que nem sei quem são.
Não vai mais formar um grupo, tentar gravar?
- Ahhh, eu teria que comprar esses aí que te falei. E como vou pagar?
Agora a perguntinha besta: gostaria de voltar a tocar com Ave Sangria? Mesmo sem Israel, é claro.
- Não gostaria, não. A não ser que tivesse um evento que justificasse a presença do Ave Sangia. Mas uma parada dessas tem outros guitarristas, baixistas, bateristas. Outros vão participar também... como o Breno Lira, sei lá! Não vai ser só Marco Polo, Almir, eu... Não vai dar dinheiro para quem é Ivson Wanderley Pessoa. Porque para quem era, já era! Então não merece fazer isso.
A quem chamarias para tocar a bateria?
- Não poderia ser Israel. Chamaria... a ver... se for pra dar dinheiro chamaria um grande baterista...
Fala sério!
- Chamaria o Hebel Perrelli! Esse aí! Ele participou do disco “Antologia”. Mas tem muito fera aí, inclusive os alunos de Ebel Perrelli são todos feras. Você pode chamar qualquer aluno desses do Conservatório de Música que já está bom.
- Na rua não. Foi no quarto dele. Ele estava caído lá no chão, com a porta aberta. Mas quem encontrou ele foi quem morava lá. A polícia já estava lá... e já tinham dado como suicídio... e eu não acredito que naquele ambiente tenha sido suicídio. Foi homicídio! Ele não tinha necessidade de se suicidar. Por isso que eu digo: eu vejo a faca tratando da galinha e cortando a carne e o pão, mas não vejo esses homens com fome e com a faca... pra fazer o quê com a faca? Eu falo para um, para dois ou pra nenhum ou até para todos: quando eles disserem que é o meu violão, é o meu violão. Se eles disserem que é o seu revólver, é o seu revólver... eu uso o quê? o meu violão. Quando pego no violão é pra fazer música, quando pego na faca é pra quê...? É pra mexer na cozinha. E quem tem um revólver é pra quê...? Pra matar! Olha, Israel só entrava lá se estivesse com o aluguel de 150 reais pago. Então..? Israel era quatro paredes e um bujão de gás. Não sei se você me entende.
Não. Você compõe ainda, tem algum projeto?
- Sim... tenho umas coisinhas pra levar pro estúdio. Mas não muita coisa. E depois é ir atrás..?
Não. Não tem como ir atrás. Não tem portas... as portas se fecharam. Uma vez no mês, que é quando recebo o dinheiro do seguro social, pago um estúdio ou compro uns Cds virgens para gravar quantos cds eu quiser, coisas onde eu participei, onde tem a minha viola, a minha guitarra, porque esses trabalhos são de alguma maneira meus. Então vendo por cinco contos, ou dez se for com capa. (pausa) ...também musiquei um livro, agora em março passado.. . uns poemas do doutor Marcelo Cavalcante Guedes... muito bom literato. “Cantigares” se chama o projeto.
Não é Cantigários..?
- Não. Cantigares. São quatro cds! Ian ser três semanas, mas eu passei menos de uma semana no Rio e me botaram no avião de volta. Era um arremesso de latinhas, churrasco pra lá, cervejinha pra cá, e eu cantando e lascando minha gargantinha e ele com a canetinha mudando as palavras, botando letra em “Sob o Sol de Satã” (música instrumental de Ivinho no disco de Ave sangria)... e chegou a um ponto que fiquei estressado e no quarto dia sentamos o doutor e eu e me mandaram de volta pra Pernambuco, né? Sem escala!
E família, filhos..? Como é a tua relação com eles?
- Tem Rebeca, Mariama e Taianã, que foi fabricada no Rio. já deve estar com 35 anos, por aí.... têm filhos também. E tem uma filha aí que disse que vem da Itália e mora em Boa Viagem, que está com 23 anos. Nunca vi mas dizem que é minha filha. Mas nenhuma delas fala comigo. Uma vez eu estava tomando uma cervejinha nos Quatro Cantos de Olinda e apareceu uma dessas mocinhas da madrugada... dizendo que conhecia minha filha. Mas nunca nenhuma me procurou. Tenho um irmão em Casa Amarela mas também não falo mais porque ele ficou agressivo uma vez que eu fui falar com ele às sete da manhã, e ele: “venha falar comigo só depois das nove!”. Mas não sou contra o mundo por isso, não... nem acho que o mundo seja contra mim. Eu sou contra essa pessoa que você fala na casa dela e ela lhe trata mal. Isso termina gerando violência, e quem tem que ir embora da casa é você. Ele fica na casa dele, né? Esperando a sua mulher e seus filhos chegarem... Aí não é legal. Aí eu volto pra minha casa, com o dinheirinho do INSS, a chave na mão e o imóvel vazio ou o pouco que tiver dentro dele para usar... e sabendo que aqui tenho meu espaço (o Campus da Universidade Federal), onde posso abrir os portões, onde sei que posso me concentrar e onde sei que vou ter paz...
Álcool e sanatórios...
- O alcoolismo foi uma consequência do sofrimento com o meio. Num ambiente onde você não se sente bem você não vai precisar tomar uma pra ser protagonista. Coisa que hoje eu não vejo necessidade hoje é de entrar no mercado da Boa Vista, por exemplo, e falar de música, discutir, tomar outra, falar, falar e falar... e pegar a rua, e falar dentro do ônibus, e chegar aqui, cair no chão e amanhecer quase morto. É melhor evitar ir pro centro da cidade, porque vai estar sempre se repetindo, só pra manter o diálogo na mesa. Quando eu procurei internação foi porque eu procurei viver, não sofrer, ficar com o sovaco fedendo, a roupa suja e mau hálito. Se não cuidava da minha vida... bem, que eles continuem fazendo sempre a mesma coisa, eu não, não faço todo dia a mesma coisa... mas mantenho uma rotina sim, que a é de pagar meu aluguel, os almoços e o supermercado...
- Mas parou totalmente..?
- Parei totalmente!
Mas há pouco encontrei você no mercado e estava bebendo!
- Bebo um dia e no dia seguinte não bebo! Veja: eu bebi anteontem também e amanheci muito doido. Mas parei. Se eu fosse continuar bebendo ia passar por um processo de saúde mental seriíssimo... então paro. Fico deitado no chão até passar. Olho pro relógio... ligo e desligo até saber que o dia de ontem não valeu nada e que o que está valendo é o dia de hoje e o de amanhã e assim pela frente... (pausa). Uma entrevista... Entre, tracinho, vista.... aí você se liga logo no oftalmologista, que é à vista. Aí sai pra cidade pra comprar no cartão ou à vista. E está na lista e é o motorista e por aí vai! (risos).
Você decidiu endoidar de vez justo agora, no meio da entrevista?
- Continuando... era o seguinte: pega um violão, toma uma... aí fica com aquilo que dá na cabeça e sai pela boca... e a voz está grave “oghhhhhhhhh” e aí você não consegue cantar mais, né? Se você faz isso de novo e de novo, acaba morrendo, vai te lascar o estômago, o fígado, o coração... e não leva a nada, entendeu?
Fala da experiência das internações. Qual é teu sentimento em relação a tudo isso?
- Nos sanatórios não tem bebida alcoólicas mas tem drogas pesadas, como Flufenan, Diepax, Gardenal e as leves com apenas cinco miligramas de tranqüilizantes. Tem café da manhã, almoço, janta, roupa lavada mas não tem você sozinho, tem você com um bando de pessoas viciadas, pobres, alcoólatras jogados pra dentro de uma área fechada... encarando uma psicóloga, encarando um psiquiatra. Começar todo dia tudo de novo, como há dezesseis anos atrás é uma coisa que eu não quero mais! Se você é músico você é músico, se você é policial é policial, mas se é deficiente mental é o quê...? É porque é doido? É porque não sabe fazer nada... ou porque não tem uma profissão..? É porque não conseguiu ganhar dinheiro com aquilo que sabe fazer?
Ensinavas violão no internamento?
- Sim, foi no NAPI. O Dr. Marcos Noronha me dava dois dias na semana para fazer oficinas de música, mas isso acabou porque não tem mais convênio com o SUS.
Quem é Ivinho hoje?
- Ivinho hoje é mais pra melhor do que pra pior. Porque se ele continuasse mais um dia no centro da cidade, ele ia se lascar! Um dia eu matava um ou um ia querer acabar comigo. Um casal é dois pratos sobre a mesa, ela de olho nele e ele de olho nela, e uma criança como contrapeso na vida deles... mas no meu caso não tem mais isso. Já casei, já descasei, eu já tive mulheres... como dizia aquela música de Martinho da Vila. Mas agora na minha porta, no meu almoço... não tem nenhuma! Eu não sei onde ficaram as mulheres. Hoje eu não tenho obrigação de ver homens internados, homens presos, homens de lá do centro da cidade... Hoje eu tenho a minha paz aqui, na Cidade Universitária, nesse espaço todo...
- Tem que ter a mesma concentração de um jogador de futebol. Você precisa de roupa limpa, energético... uma vitamina C, muito suco de laranja, entendeu? Saúde, tratamento médico e local de meditação, porque quando você cai na arena, é você, a bola e um bando de homens com você. Se você toca na bola e faz o gol, você está fazendo certo e ganhando dinheiro como jogador de futebol... a mesma coisa é com o músico. Mas a técnica é mais importante que o feeling, porque é com a técnica que você causa “impressionismo”, né? A técnica faz com que as pessoas digam: “meu irmão, o cara agora botou sem cuspe! (risos)... o cara botou pra quebrar! ”. Olha o Yamandu Costa! Mas não se pode chegar a isso mal dormido, maltrapilho, maltratado... de Israel pra lá! (risos). E chegar do cemitério direto pro céu e deus dizer “seja bem vindo, eu já estava te esperando..!”... Isso no céu, porque o inferno é aqui mesmo, não é? Frio, fome, leptospirose, úlcera, muriçocas... vai se lascar! É tanta coisa que aparece na gente ao longo da vida!
Não sei se você respondeu a pergunta, mas tudo bem, fala sobre o feeling... ou então o que te der na telha...
- Olha, música pra mim sempre foi uma coisa fluindo... sai do zero, chegou no meio e chega crescendo lá em cima, que é o ponto máximo... a extrapolação. Essas coisas tipo assim... pagodes de barzinho, bregas, essas bandas Calypsos e não sei o quê, que chegam nesses ônibus aí... esses ônibus que nem é porque vão virar e acontecer uma tragédia na estrada, não. É porque são uma porcaria mesmo! Aquilo é uma carga... uma indústria de trabalho na estrada!
- Mas você não consegue falar do sentimento na música!
- Mas o principal na música é fazer com sentimento!
- Ok. Fala mais alguma coisa pro mundo, vai!
- Pro mundo eu digo o seguinte: enquanto estás tranqüilo no local que tu estás, permaneça! Porque quando perturbarem a tua área, quem vai ter que se retirar é você mesmo, porque quem faz confusão é sempre quem está chegando. Deixa o vento soprar, deixa tudo parar... deixa esse motor de carro passar, que atrás vem outro e as tuas orelhas estão preparadas para tudo o que vem, e a tua visão para tudo o que está diante dos teu olhos (pausa)... E aí..? Gostou disso? (risos).
Oi, Jorge,parabéns pela matéria.Ivinho merece,e o pessoal mais jovem precisa saber (e ouvir) essas coisas...
ResponderExcluirObrigado pela publicação do poema ("O Grego Mais Louco"),que fiz p ele. O CD (demo) que fizemos chama-se "Aviso a Geórgia",e foi colocado sem crase mesmo,deliberadamente,por razões estéticas e idiossincráticas... Para os fãs dele, "avise" que temos uma gravação inédita,e de bom nível,do show que fizemos na Livraria Cultura (agosto de 2008)- é/será(?) o "Aviso a Geórgia ao vivo",com direito a momentos de grande vituosismo e emoção,etc Só falta editar direitinho e dar uma masterizada legal,ok? Sem mais ,um abraço
Gilmar Serra
Li com muita atenção e admiração,porque você soube compreender bem Ivinho,em sua essência...
ExcluirUm artista realmente excepcional e,discriminado pela sociedade (maioria) "civilizada e intelectualizada!"
Parabéns! E, se tiver condições, abra alguma porta pra ele,ou converse com alguém que entenda a situação,de maneira humana/digna.
Fantastica entrevista, sou a mae de suas duas ultimas filhas, sempre que vou a Recife faço contato com o genio da guitarra, tenho um enorme carinho por ele mais pouca paciencia :), realmente nossas filhas tem dificuldades de contato justamente pelo carater dificil do genio :) nao conseguem entender nada, mais siguramente è uma pessoa de alma limpa e de uma bondade infinita sem falara na genialidade musical, parabens!
ResponderExcluirrelendo a materia, Ivinho nao falou de um periodo triste de sua vida que foi sua detençao ao antigo DOPS e a internaçao no hospital da tamarineira, esse fato marcou profundamente sua vida se nao me engano tudo aconteçe logo depois de sua experiencia montreux, conheci ele muito depois e fomos morar a Rio de Janeiro, onde chegou a fazer gravaçoes e uma grande apresentaçao organizada pela universidade do Rio onde tinha a participaçao de Chico Buarque.
ResponderExcluirOi.Só tive com Ivinho uma vez. Puxou conversa comigo num Bar em frente do Teatro do Parque (antes o garçom me disse quem era ele). Mas quando ele conversou uns minutos o próprio garçom pediu pra ele se mandar. Fiquei sem ter o que fazer. Ele tava meio doidão, com uma TV portátil oferecendo a todo mundo. Ao voltar pra casa fui direto vê-lo num vinil de Alceu Valença ("A Madre Superiora" é ótimo).
ResponderExcluirParabéns pela entrevista. Agradeço também ao baixista Rinaldo Lucas, que me deu os endereços (da matéria e da Comunidade de Ivson no Orkut). Como diria Raul Seixas: "Se hoje eu sou estrela/ Amanhã já se apagou". Longa vida, Ivinho!
parabéns pela entrevista desse maravilhoso artista da música ..nota 10!!
ResponderExcluirGrande entrevista, parabéns! Gosto da verdade de Ivinho.
ResponderExcluirNao sei nao, ele merecia mais do que a loucura e a pobreza. Ha um montao de pseudo-musicos que entraram pro sistema e lucram com a ingenuidade e ignorancia tupiniquim.Ele merecia mais do essa loucura mas o mundo nao eh dos que merecem e sim dos mais espertos, fuck it !
ResponderExcluirpois é Brau,dia desses vi ivinho tocando em uma apresentação na cultura e tinha um baixista tipo desses que voce fala pseudo-mugicos, esse tal baixista disse que tocar com ivinho era foda, não gostava porque ele não seguia as regras do pré estabelecido pelo maestro(pseudo)...
ResponderExcluirivinho é livre...viva a arte livre!!!
Conhecí Ivinho por volta de 1986, 87. Eu "tocava" no Primeiro Lance, na Rua da Hora. Começamos a nos encontrar, íamos no Cantinho da Sé, tocávamos e cantávamos as músicas que gostávamos e de vez em quando o levava no Primeiro Lance para dar uma "canja".
ResponderExcluirApesar de ganhar uma boa grana tocando na noite, já havia tocado no Casinha Branca em Boa Viagem e no Beluchi, alí perto da Rua Amélia, uma transversal, sempre tive absoluta consciência das minhas limitações como músico e da enorme potencialidade que no sentido inverso, tinha Ivinho com seu instrumento de vida.
Tomamos muitos porres, conversamos muita "aresia", dividimos bons momentos. De vez em quando ia buscá-lo na casa da mãe onde ele morava, em Rio Doce, Olinda, uma casinha simples, e percebia o quanto ele gostava da sua genitora.
De vez em quando também ele me chamava para ir até Boa Viagem, alí na fronteira com o Pina, onde iria ver a ex mulher. Acabávamos sempre no barzinho que ficava em baixo do prédio, tomando mais algumas.
Tentei encontra-lo em Recife em algumas oportunidades mas a última vez que havia tido notícias foi através de uma pessoa que se identificou como amigo dele, e que me informou que ele estava mais uma vez internado em uma serviço psiquiátrico.
Fico feliz em saber que continua na luta, na vida.
Se por acaso ler essa mensagem Ivinho, saiba que estou em Natal, que vou sempre a Recife e que continuo frequentando o Cantinho da Sé e tomando algumas, só que agora com mais "responsa".
Quem me falou de você há uns três meses foi Paulinho da Estrada. Estávamos tomando umas e tocando todas lá no Biruta, em Brasília Teimosa.
Se eu pudesse meu irmão, gostaria muito de reencontra-lo.
Um grande abraço.
Júnior, JR de Natal lembra?
Obs. Ivinho semre me chamava de JR.
Ê rapaz...
ResponderExcluirComo disse Ivinho, "já ouví muita coisa" mas, ter ouvido e convivido o mínimo com Ivinho é gravar definitivamente algo que se conhece e se admira pra sempre: harmonia, virtuose, sorriso franco e um bocado de coisas mais que somente os verdadeiros gênios conhecem.
Eu, de sorte, ví, ouví e guardo num lado da memória sem tecla de "delete".
E, se não quiser ouvir mais, "eu cegue"!
Dá-lhe Ivinho.
Abração.
Jorge
JR: Darei seu recado ao Ivinho. Encontro sempre com ele quando, de vez em quando, almoço no Mercado da Boa Vista. Você pode passar seu telefone ao meu e-mail e ele seguramente entrará em contato com você. Um forte abraço. Jorge Verdi
ResponderExcluirParabéns, Jorge, pelo belo espaço dado a Ivinho.
ResponderExcluirIvinho é um gênio. Um dos melhores guitarristas do mundo. Ainda tem muito a fazer. Loucos (com ou sem carteirinha) são os que estão à volta dele e não conseguem ver isso.
Pobre Alceu Valença que excluiu o nome de Ivinho (e de Israel Semente) do lançamento em CD do Lp Espelho Cristalino. Ninguém consegue apagar o passado ou o presente. Pobre Alceu, madre superiora, tão perdida na Batalha Cerrada da vida que segue acontecendo na Maciel Pinheiro ou Leblon.
Rafael Lemos
Beleza de entrevista Jorge. Sou admirador do trabalho de Ivinho há séculos. E essa entrevista mostra o quão humano o cara é. Gostaria de, se possível, ter um canal de contato dele. meu email: comuniq@ibest.com.br
ResponderExcluirAbraços,Paulo.
Jorge más allá que no caso una en portugués el blogs está re bueno y bien diseñado te felicito por la Argentinidad!!!
ResponderExcluirAbrazo grande
Fantastica!
ResponderExcluirMeus parabéns!
São poucos os que conseguem penetrar fundo nas memórias de Ivinho.
Parabéns pela matéria!!!! grande Ivinho,abraço!!!!
ResponderExcluirGRANDE ENTREVISTA. Tive o privilégio de ver esse músico fantástico tocando Avohai na Fender Stratocaster, na casa de um amigo meu em Rio Doce. Simplesmente INCRÍVEL, era 1987/1988 não lembro bem o ano, mas o que aconteceu ali foi inesquecível. (HENRIQUE MAGO)
ResponderExcluirGrande Ivinho, nunca será esquecido. Aproveitei três respostas dele desta entrevista para escrever uma crônica que pus no Overmundo. Para lê-la, clique no link abaixo:
ResponderExcluirhttp://www.overmundo.com.br/overblog/ivinho-da-vila-dos-comerciarios-para-montreux
No primeiro comentário abaixo do texto eu citei esta fonte, viu Jorge Verdi? Parabéns pela belíssima entrevista! Abílio Neto
Tem um vídeo do Ivinho no you tube, ele toca com um copo ...muito bom ..
ResponderExcluirvida longa ivinho!!
http://www.youtube.com/watch?v=v6g-q0Ny4mA
é muito bom o vídeo, vi e gostei, se eu não me engano é na ufpe.
ExcluirCerta vez ele chegou descalço e cheio da marijuana no mercado da boa vista, falou sobre discos voadores, montreux e poesia, mas quando lhe deram um violão, ele puxou o hino do siri na lata, foi um frevo por um mágico, O MERCADO FOI ABAIXO e nossa alegria subiu aos céus
ResponderExcluirO Ivinho, no ano de 1985, se tornou meu amigo( na Várzea ) de "graça" mesmo. Tocamos muitas vezes na sala de minha casa...Certa vez me ensinou uma ESCALA de Lá e, de quebra uma música muito legal, que até hoje carrego comigo.Lendo a entrevista, bateu uma saudade. ..
ResponderExcluirO Ivinho, no ano de 1985, se tornou meu amigo( na Várzea ) de "graça" mesmo. Tocamos muitas vezes na sala de minha casa...Certa vez me ensinou uma ESCALA de Lá e, de quebra uma música muito legal, que até hoje carrego comigo.Lendo a entrevista, bateu uma saudade. ..
ResponderExcluirmuito boa a entrevista, jorge, só descobri agora. Mas não entrevistei ivinho tomando teacher's. a gente tomou chope. E eu juro que não sou alcoolatra.
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